Uma dessas situações foi o que se passou na Bélgica, na semana passada. A Bélgica é um país que está a atravessar uma gravíssima crise institucional e política, marcada por fortes divergências entre francófonos e flamengos.
Do ponto de vista religioso, a Bélgica é o país mais marcadamente anti-católico da Europa. Em Abril de 2009, o Parlamento Belga foi o único, em toda a Europa, a emitir uma nota de protesto contra as declarações que o Papa tinha feito na sua viagem a África, sobre os meios anti-conceptivos (declarações do Papa que correspondem, em parte, às recomendações da OMS em termos de conselhos para evitar a propagação da Sida).
Há vários meses, a Conferência Episcopal Belga instituiu uma Comissão independente, encarregada de recolher todas as informações sobre abusos sexuais cometidos por membros do clero belga. Esta Comissão tinha como missão acolher denúncias, investigar casos suspeitos e colaborar com as autoridades judiciais do país na condenação dos culpados e na protecção das vítimas. Entre esta Comissão havia um mútuo acordo de respeito e de colaboração.
No passado dia 24 de Junho, as autoridades judiciais belgas decidiram revistar quatro locais: a sede da Conferência Episcopal Belga, a sede da Diocese de Malines-Bruxelas (sede primacial da Bélgica), a residência do Card. Godfried Danneels e a sede da Comissão independente que investiga os abusos sexuais de menores, em Lovaina. Além disso, abriram um buraco no túmulo onde está sepultado o Cardeal Jozef-Ernest Van Roey e no túmulo do Card. Leon-Joseph Suenens, que foram arcebispos de Malines-Bruxelas.
Quando os investigadores judiciais chegaram à sede da Conferência Episcopal Belga, os Bispos estavam na sua reunião plenária, ou seja, a maioria dos Bispos (se não todos, mas não há dados que permita confirmar) estavam reunidos. Quando os investigadores chegaram, foram-lhes retirados os telemóveis, ficaram impedidos de sair do edifício durante mais de 9 horas e foram entrevistados individualmente pelas autoridades.
Em Lovaina, funcionava a Comissão independente encarregue de investigar os abusos sexuais cometidos contra menores por parte de membros do clero. Os escritórios da Comissão foram esvaziados de toda a documentação que a Comissão já tinha recolhido (475 dossiers de documentação). O Juiz instrutor da magistratura belga encarregue de investigar os casos de pedofilia achou que a Comissão era pouco independente e, portanto, decidiu romper o acordo que existia entre a Comissão e a Magistratura para que a Comissão tivesse tempo de investigar as denúncias que lhe chegavam. Desta maneira, o trabalho da Comissão foi interrompido ainda na fase de investigação, tendo deixado de haver motivo para que existisse. Por isso, o Presidente desta Comissão independente demitiu-se do seu cargo.
Ao mesmo tempo, outros investigadores chegaram à sede do episcopado de Malines-Bruxelas. Levaram todos os dossiers, computadores e documentação que quiseram e encontraram, sem se preocuparem de averiguar se a documentação era relevante ou não para a investigação da pedofilia. Por esse motivo, o normal funcionamento da Diocese ficou comprometido durante algum tempo.
Contemporaneamente, foi revistada a residência do Cardeal Godfried Daniels, Arcebispo Emérito de Malines-Bruxelas. Foram-lhe confiscados todos os dossiers que tinha em casa.
Por fim, foi feito um pequeno buraco nos túmulos de dois Cardeais: Jozef-Ernest Van Roey e Leon-Joseph Suenens. Neste caso, foi inserida uma câmara nos túmulos à procura de documentação que pudesse estar ali escondida. Os investigadores nada encontraram.
No mesmo dia, os Bispos belgas emitiram um comunicado sobre o que se tinha passado. Durante o tempo em que estiveram impedidos de comunicar com o exterior e de sair do local onde estavam foram tratados com respeito, apesar das limitações impostas pelas autoridades judiciais.
No dia 26 de Junho, o Card. Tarcisio Bertone declarou a sua admiração pelo sucedido e condenou a actuação das autoridades judiciais.
No dia 27 de Junho, o Papa enviou uma carta ao Arcebispo de Malines-Bruxelas. Nessa carta, o Santo Padre condena "o modo como foi levada a cabo a investigação". No documento, Bento XVI afirma ainda: "faço votos que a justiça continue o seu rumo, garantindo os direitos fundamentais das pessoas e das instituições".
Os jornais do passado dia 28 de Junho, na sua quase totalidade, afirmavam, a grandes títulos, que o Papa condenou as investigações das autoridades judiciais belgas. Pelo contrário, o Papa renovou o desejo que as autoridades judiciais prossigam as suas investigações. Limitou-se foi a condenar o modo como tudo decorreu.
Os Bispos, na Bélgica, estiveram entre os primeiros a criar uma Comissão independente para serem investigados os abusos no clero. Deram, também, orientações claras sobre a formação e, na reunião plenária de Bispos do passado dia 24 de Junho, iam ser tomadas mais medidas para prevenir futuros abusos e para pôr em marcha um plano de ajuda às vítimas. Além disso, criaram um fundo de apoio a essas mesmas vítimas.
Há motivos objectivos para tanta dureza de tratamento no modo como foram feitas as diligências judiciais no passado dia 24 de Junho?
Publicada por JP em 6/30/2010 em 'Ubi caritas' AQUI